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segunda-feira, 1 de março de 2021

Te vejo de binóculo

                                   


       

Quando você é jovem, navegando nas ondas da vida e tentando sobreviver na melhor marola, ainda passa. Mas a medida que morrem aqueles que tanto lutaram para a construção de um discurso ou de uma realidade,o  acaba ali é  a sensação do nada, tomando conta. Devagar. E, se a pessoa sobrevive às intempéries.

Para mim, isso começou com a morte do meu pai.  Ele trabalhou setenta anos sem tirar férias, construiu suas coisas sozinho, dia e noite, sem ajuda de nada e de ninguém. Homem culto que não pode viajar para conhecer o que ele conhecia pelos livros. Tinha um mapa de Paris na sua mesinha e sabia onde era o quê, por exemplo. Quando alguém viajava pela Espanha ou alhures, ele falava com a pessoa como se tivesse ido no lugar. Geografia, história, tudo. E, em um tempo sem internet. Quando vejo tanta informação e de graça, penso como ele iria ficar satisfeito.

Pois é, bastou ele morrer e em cinco anos tudo que ele construiu  foi passado pra frente. A bolha de sabão e suor, espocou no ar. A liderança da família passou para outras mãos, ignorantes e limitadas. A união se desfez com jogo mesquinho de interesses inconfessáveis. Puff ! Quem está fora não entra e quem está dentro não sai.

Percebi que, para  ficar no tempo, como lembrança além dos retratos onde passadas duas gerações,  ninguém  sabe quem é quem, é preciso  fazer guerras, matar meia dúzia nem que seja o Bandido da Luz Vermelha ou grande traficante. Virar estátua erigida em praça pública ou seriado de televisão, com ator canastrão. Caso contrário, nem a parentada vai saber quem é você.

Minha herança, um quadro do Bracher que meu pai comprou e eu estava com ele, está dependurado na parede dos indiferentes. Minha aliança, presente de momento importante, jaz nas mãos de quem sequer sabe a diferença entre vidro de bijouteria ou diamante sem jaça. Ambos surrupiados por gente que consegue fazer das suas  lembranças o  fim da linha. São exemplos miseráveis mas que representam o nada. 

Assim, só não entende quem quer ir para a praia ou para a  balada, com toda essa pandemia, é quem está no fim da vida. Impedir a vida porque as lembranças se vão com a morte. Seja hoje ou amanhã e cada um cuida do seu.Ver a morte, nem precisa de binóculo. Embora fique claro que não é a morte que interessa mas a ocupação de algum leito que o responsável quer ficar com a grana que o paga.

Morram ! Morrem! Morramos todos. Deixe a juventude viver, que a juventude é curta e passa rápido. Tomara que não se tornem azedos como esses adultos insuportáveis.

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